quinta-feira, novembro 04, 2010

Sobre a problemática familiar do pesadelo do "Crack"

Por Carlos Eduardo Rios do Amaralimage

Ninguém ousaria duvidar, um dos maiores vilões no tema da violência doméstica e familiar na cidade de Vitória (ES), e certamente em todos os grandes centros urbanos de nosso País, é a maldita droga, notadamente o destrutível “crack”. É o que naturalmente as manchetes de capa dos jornais locais estampam todos os dias. E a constatação não é diferente nas fileiras do Núcleo Especializado de Promoção e Defesa dos Direitos da Mulher (NUDEM), da Defensoria Pública Estadual capixaba em Vitória.
Ao leigo, a percepção única é a de que o usuário de “crack” seria um monstro, alguém que emergiu do Hades, de um mundo inferior dos mortos, pessoa que voluntariamente escolhe e prepara o mal, que se dedica diuturna e incansavelmente a atividades ilícitas ou macabras. Para outros muitos, o usuário de “crack” seria, em última análise, um bandoleiro, afinal, o governo investe maciçamente em campanhas publicitárias contra o uso de drogas ilícitas.
Após atendimento de centenas, talvez quase um milhar ou mais, de usuários de “crack”, nesses últimos anos à frente do NUDEM na Capital, tranquilamente confesso que não consegui encontrar nesses “monstros” a própria monstruosidade retratada pela turba ou pelo ignorante (adj. aquele que ignora). O que vem despertando minha maior curiosidade e dedicação acerca do processo de constituição e consolidação desse vício no ser humano.
Para minha surpresa, ao contrário do que se possa imaginar, muitos usuários de “crack” jamais fizeram uso de uma gota de álcool sequer, não freqüentam e nem gostam de botequins e rodinhas de boemia, nem gostam de música.

O “crack” não é uma droga apenas de jovens, como se costuma ensaiar. Todos os dias atendo pessoas de quarenta, cinqüenta anos, envolvidas com o “crack”, acostumadamente vistas como excelentes e prestativos trabalhadores nos seus bairros, passando quase que despercebido o vício num estágio primitivo.

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As crianças da família, filhos e sobrinhos, muitos consultados pessoalmente por mim, adoram jogar bola, soltar pipa, ir à praia ou lagoa, brincar com o pai ou tio dependente químico quando ausente a fase aflitiva da droga.

Na sala de espera do NUDEM, registro, nunca houve algum tumulto causado por usuário de “crack”, ao revés, o comportamento destes durante a longa espera é de dar inveja a monge tibetano, passando despercebido pelos demais assistidos o motivo da presença daquele naquele recinto.

Os usuários de “crack” durante os atendimentos não querem argumentar ou se defenderem de nada relativo ao último boletim de ocorrência policial lavrado. Não têm esses dependentes nenhum script ou roteiro de filme policial ou de suspense para, ardilosa ou estrategicamente, escaparem da acusação formal. É estranho, parece que eles gozam de alguma imunidade oculta, uma excludente de culpabilidade, que será tirada da cartola no último segundo.

Quantos aos objetos subtraídos de seus famílias, constato que o usuário de “crack” não “pega troco” com traficante, afinal quantas pedras dessa droga valem um vaso sanitário sujo arrancado na marra sem ferramentas, ou um motor de geladeira retirado à mão?

Usuário de “crack” não guarda troco para o desfrute de uma vida fácil ou investimento em um futuro distante em prejuízo alheio. A subtração é vinculada apenas e tão-somente à manutenção do vício. Motivo pelo qual sempre atendo pais e avós que confessam que quitam pessoalmente a dívida da droga ou deixam seus cartões de bolsa-família na boca-de-fumo.
Algo está errado então nessa compreensão sobre o usuário de “crack” e seu modo de vida. O que me fez, em meu ofício, a convocar as famílias desses usuários contumazes do “crack” até o NUDEM para uma maior investigação e estudo dessa problemática familiar ainda obscura. Não me limitei, nem me limito, a ouvir apenas os genitores, gosto sempre da presença de tios, sobrinhos, irmãos, vizinhos e todos aqueles envolvidos no pesadelo familiar.
Primeiro, ouço separada e demoradamente cada um, em dias diferentes, após, os reúno em minha távola. Cada trejeito, olhar de soslaio, pestanejo involuntário, argumentos são observados.
E essa tarefa investigativa não é fácil. O retrato inicial do drama parece sempre querer ser de um lado o povo hebreu oprimido e, de outro, o “maldito” usuário do “crack”, o Golias que não se derruba. O estrago causado pelo dependente é trazido como um pacote fechado inviolável, já aprioristicamente decifrado em comum acordo pela célula familiar acampada na outra margem do rio. Quanto ao usuário da droga, apenas espera-se o seu silêncio e concordância apenas movimentando levemente sua cabeça para cima e para baixo.

O problema para muitos parentes é tratado apenas na perspectiva de uma profilaxia hospitalar interminável, no uso de uma palavra mágica por alguma autoridade, na realização de um exorcismo ou da remessa do viciado ao cárcere durante um longo tempo. A causa da dependência, a raiz do entrevero, raramente é cogitada. Mesmo porque, como se sabe, quando se volta para a gênese de uma discussão ou aflição coletiva, pontos inconvenientes de interseção podem surgir, misturando personagens e rótulos, borrando paisagens desenhadas unilateralmente, até mesmo alterando velhas trilhas sonoras.
Em muitos casos, observo que essas famílias, alguns membros dessas células, não são seres tão imaculados ou pacatos assim. Daí a razão de não se convocar apenas aquela sempre “boa velhinha” do lar em chamas - a idosa e cansada genitora - que geralmente fica com o encargo burocrático de tudo, de ir à Delegacia de Polícia registrar o primeiro BO até visitar o viciado na penitenciária nos dias fixados pelo Poder Público, levando roupas e comida, sem falar nas suas “intervenções” nos balcões dos Cartórios dos Fóruns para dizer que seu filho “é um bom menino”, que “é trabalhador”. Mas, às vezes, nem a “boa velhinha” é ou foi tão inofensiva e pacífica assim, como se espera nesse filme da vida diária que não aceita rebobinada.
Não me refiro aqui, nesse breve apontamento, a aqueles pais, que também atendo todos os dias, que não sabem dizer o que pode ter acontecido para que seus filhos se inclinassem para o mundo das drogas, “mesmo tendo de tudo, do bom e do melhor”.

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Não faço, neste modesto artigo, remissão ao leitor daqueles pais que dizem que sempre trabalham dez, quatorze, dezesseis horas por dia, que viajam às vezes por períodos superiores a um ano também a trabalho, e presenteiam seus filhos com o melhor vídeo-game ou outros presente caros, para compensar a distância da prole, matriculando-os nos melhores colégios da cidade em regime integral.
Também não tangencio aqui a estratégia daqueles pais que enviam seus filhos a maravilhosos e longos intercâmbios sucessivos em volta de todo o globo terrestre como uma espécie de Indiana Jones de luxo ou daqueles genitores que presenteiam seus jovens filhos com um apartamento de quatro ou cinco quartos de frente para o mar, podendo este levar sua namoradinha para lá morar como se casados e independentes fossem – e não o são – , e sempre me questionam angustiados, inundados em lágrimas, aonde erraram, o porquê de terem perdido toda a fortuna, e o que poderia ter sido (material ou financeiramente) feito a mais naquela época da “vaca gorda” antes da bancarrota da família e mergulho do filho nas drogas.
Escrevo ligeiramente aqui, para apressadamente informar e esclarecer ao leigo, que muitos membros das famílias envolvidas com a problemática do “crack”, às vezes surpreendentemente todos de determinada célula familiar, até mesmo em alguns casos a própria “boa velhinha”, são personagens, em alguns muitos casos, friso, exatamente de personalidade feroz, com tendência agressiva, pouquíssimo abertos a qualquer tipo de diálogo.

Em verdade, durante os complexos e detidos atendimentos é claramente percebido, em alguns casos, que entre todos os parentes dessas mencionadas famílias, entre uns e outros, existem diversas rixas pessoais acaloradas sobre pretensões muito alheias à questão do drogado, aonde todos os problemas são maximizados e tornados propositadamente insolucionáveis, ninguém é ou deseja mediar qualquer discussão familiar, pouco se deseja pacificação para os inúmeros outros problemas que cada um entende possuir frente ao outro parente parecendo ser o mais importante se sobressair num bate-boca perante as autoridades, mesmo porque a tradução desses problemas revelariam discussões vazias acerca de um caderno não devolvido ou uma fofoca antiga no bairro já esquecida que não merece análise por eles mais detida, sendo mais importante o desfile da discussão, o espetáculo pirotécnico da verbalização de palavrões e puxões de cabelo. E muitos moram no mesmo lote, em pavimentos e “puxadinhos” (ou “puxadões”) distintos. E é BO para tudo que é lado...
E é nesse meio inóspito, em muitos casos, que deve ser inicialmente descortinada a questão da dependência do “crack”.
Relembro-me do antepenúltimo atendimento que fiz essa semana no NUDEM, de família com esse mesmo problema da dependência do “crack”, onde compareceram todos os membros da família, queixando-se do viciado que jamais aceitou qualquer tratamento nas últimas duas décadas. Consegui, após muita persuasão e oitiva do dependente, a encaminhá-lo por sua livre e espontânea vontade a submissão a tratamento junto à salvífica e dedicada Equipe de Atendimento Multidisciplinar, formada por renomados e fantásticos Psicólogos e Assistentes Sociais da Casa do Cidadão de Vitória.
O dependente demonstrou um sincero e entusiasta desejo de se tratar, de se livrar do mal de seu vício.

Quando, de repente, para minha surpresa, seu irmão levanta-lhe a voz, em tom muito agressivo, dizendo que era para eu chamar um camburão para prendê-lo porque, segundo este, o viciado estaria se comportando mal na fila para primeiro atendimento e agendamento no setor psicossocial ou algo parecido que sequer despertou a atenção de mais de uma dezena de seguranças fortemente armados e atentos que ali guardam o recinto e secretárias da recepção. Sua mãe, por sua vez, nesse mesmo átimo questionava-lhe dura e asperamente sobre onde este tomaria café neste dia, já que havia saído de casa sem fazer a primeira refeição do dia. Graças a Deus, tudo foi contornado, e foi agendada a primeira consulta do dependente.
Para minha maior alegria, o mesmo reapareceu no outro dia, desejando saber mais sobre a Lei Maria da Penha, de tudo anotando em seu velho caderninho, me pedindo para responder vagarosamente.
Torço muito por ele.
É preciso que toda a sociedade e o Poder Público, no desafio de vencer o “crack”, lancem seus olhares e reflexões na fonte e causa primeiras da busca da droga pelo ser humano, na raiz do pesadelo familiar que antecede anos-luz as crises de fúria do dependente químico. De toda sorte, muito ainda tem que ser debatido pelos especialistas e pela sociedade civil, é preciso se recriar uma sociedade mais terna e gentil, mais meiga e dócil, mais paciente e compreensiva, aonde se aprenda que homem também chora e que os filhos não devem aprender todas as lições da vida apenas na escola e na rua, mas também e principalmente em casa, por mais fatigados que estejam seus pais após a longa jornada de trabalho diária, ministrando-lhes princípios e regras de convivência.
Finalizo, por ora, lembrando John Lennon:
“Não se drogue por não ser capaz de suportar sua própria dor. Eu estive em todos os lugares e só me encontrei em mim mesmo.”´

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Carlos Eduardo Rios do Amaral - Defensor Público no Espírito Santo

Fonte: Espaço Vital

http://www.guiasaojose.com.br/web/coluna_ler.asp?id=4610

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